R2 da Bárbara Starfield, Gabriela Medeiros, relata seu estágio no Porto
06:27:00
A residente Gabriela Medeiros,R2 da Clínica da família Bárbara Starfield realizou seu estágio no Porto em Portugal. Encaminhou-nos seu relatório com a experiência vivida.Acompanhe abaixo o relato.
Residente: Gabriela Ribeiro Medeiros
Local: Cidade do Porto - Portugal
Período: 01.10.2016 a 30.10.2016
Unidade: USF Arca D’água
Introdução
A chance de realizar um estágio de medicina de família em outro país
muito me atraiu quando entrei para o programa de residência e, a escolha por
Portugal foi motivada pela facilidade da língua. Esperava viver uma experiência
diferente do que vivo no meu dia a dia no Rio de Janeiro, convivendo com novas
pessoas, condutas e histórias.
Minha unidade se encontrava em uma região residencial, com praças,
comércio e transportes públicos próximos, sendo de fácil acesso ao público. No
primeiro dia, fui recebida por Dra Isabel Moita, médica sanitarista e
coordenadora da Unidade de saúde de Paranhos, ela me apresentou a estrutura de
saúde da cidade do Porto. A cidade é organizada em Agrupamento Centros de Saúde
(ACeS), e fui locada no ACeS Porto Oriental, do qual possui diversos centros de
saúde, um deles era o Centro de Saúde de Paranhos.
A unidade de Paranhos é um prédio de fachada antiga, que foi reformado
para comportar a estrutura das três unidades de saúde distintas, uma
unidade de saúde pública e 2 de medicina geral e familiar- USF- ou
medicina de família e comunidade, uma delas é a USF Arca D’água. Além
de USFs e saúde pública, o ACeS possui ainda unidades de cuidados
personalizados e unidade de recursos assistenciais partilhados - URAP- que é
semelhante ao Nasf no Rio, com fisioterapia, dentista, nutrição, psicologia e
outros. Essa URAP se localiza em uma prédio em anexo à USF Barão de Nova
Sintra.
Após a apresentação, fui apresentada à Dra Felicidade Malheiro -
coordenadora médica da USF Arca D’agua, e a Dra Sara Quelha, residente do
quarto ano de medicina geral e familiar, as quais eu acompanhei ao longo do
mês.
Atividades desenvolvidas
Durante o período do estágio pude acompanhar as consultas, visitas
domiciliares e atendimento complementar feito pelas Dras Sara e Felicidade.
Ambas dividem uma lista de aproximadamente 1700 pacientes, e atendem juntas
pacientes hipertensos, diabéticos, saúde infantil, saúde da mulher,
planejamento familiar e outros. Dra Sara atende ainda os pacientes tabagistas,
realizando avaliações e intervenções necessárias.
Percebi que os paciente são, em sua maioria, de classe média, com bom
nível de escolaridade, tratam as médicas de maneira cordial e respeitam suas
decisões. Mesmo os que não concordam com as condutas, que insistem em pedir
exames ou trazem solicitações externas, acabam por acatar a decisão médica pois
entendem que existem evidências das quais as condutas são baseadas, e que
custos desnecessários devem ser evitados. Vale ressaltar também que há
leis que proíbe o médico de transcrever exames solicitados por médicos particulares,
dando ao médico de família a autonomia de transcrever ou não, dependendo da
indicação.
A maioria dos atendimentos realizados muito se assemelha ao do Rio,
hipertensos e diabéticos têm consultas regulares a cada 6 ou 3 meses, de acordo
com a gravidade do quadro. Saúde infantil e puericultura também tem
marcação igual ao Brasil, porém as consultas são feitas simultaneamente com
médico e enfermeira, e não intercalado mês a mês. O acompanhamento das
gestantes é feito de maneira compartilhada com obstetra no hospital de
referência da unidade- Hospital São João- após o diagnóstico na unidade é feito
uma carta ao hospital, que agenda a consulta e realiza os exames necessários
(usg, laboratório e investigação de trissomias). Acho interessante ressaltar
que em Portugal o aborto é legalizado, seja por vontade materna (feito até a 10
semana), estupro ( até a 16 semana) ou má formação ( até 24 semanas).
Presenciei ainda muitas consultas de planejamento familiar, incluindo o
procedimento de colocação e retirada de implante de progesterona, que tem
coparticipação do governo, sendo um método muito utilizado. A coleta de
preventivos - papanicolau- está sendo feita de maneira diferente do Rio,
atualmente eles têm preferência pelo meio aquoso e fazem pesquisa de HPV, em
caso de normalidade, o exame é repetido em 5 anos. Se alterado, seguem os
protocolos de nova coleta de acordo com a alteração. Os exames são analisados
pelo IPO- instituto português de oncologia, se alterados, o próprio IPO
notifica o Hospital São João (referência) que irá tomar as condutas
necessárias, o rastreio do câncer de mama ocorre do mesmo jeito.
Acompanhei também as visitas domiciliares, que são feitas a pacientes
idosos ou restritos ao leito, muitas vezes de carro por conta da distância. Em
geral, todos os pacientes possuem casa com boas condições de infraestrutura e
saneamento, é possível perceber que alguns têm uma situação econômica melhor,
tendo um domicílio mais confortável, outros, ou por questões financeiras, por
dificuldades físicas ou por serem uma família disfuncional, possuem domicílios
mais precários.
Além das visitas, a residente Sara era responsável pelos atendimentos
dos pacientes tabagistas e, com ela, pude aprender sobre essa dependência tão
comum entre os portugueses. Ela realiza atendimentos individuais, priorizando a
abordagem comportamental e a mudança dos hábitos. Eram usadas os testes de
Fagerstrom e Richmond (para avaliar motivação). A maior parte dos pacientes que
procuraram atendimento eram adultos jovens, que iniciaram o uso ainda na
adolescência. Quando necessário, era feito o tratamento medicamentoso, optando
principalmente pela bupropiona e gomas de mascar, pois os adesivos não era
co-participados, tendo um custo elevado ( cerca de 45 euros).
No mês de outubro foi iniciada a campanha de vacinação contra a gripe.
Diferente do Brasil, Portugal visa proteger idosos e grupos de risco, como
transplantados; crianças, gestantes e portadores de doenças crônicas só são
vacinados com indicação médica e pagam pelo vacina, que também são vendidas nas
farmácias.
Algo que muito me surpreendeu durante o estágio foi o prontuário
eletrônico. Um sistema inteligente e objetivo, que permitia ao médico, em uma
só tela, preencher todo o SOAP, ver os CIDs ativos (na verdade eles utilizam
mais o CIAP) e datas das últimas consultas. O sistema possui ainda um link
direto com o sistema nacional de prescrição médica, onde é possível olhar todo
o histórico de prescrição do paciente, mesmo que tenha sido feito por outro
médico ou unidade. A emissão de receita é feita de maneira digital, podendo ser
impressa ou enviada por mensagem ao paciente, que recebe um código que
possibilita o acesso do farmacêutico à receita. Além da receita, o prontuário
possui um link direto com os hospitais conveniados, dando ao mf a oportunidade
de encaminhar o paciente, checar prontuário, marcações, resultados de exames,
além de permitir a comunicação com o especialista. O sistema também permite ver
o tempo de espera para consulta, dando a opção ao paciente de ir em outro hospital
que esteja menos sobrecarregado. Por exemplo, a consulta para oftalmologista no
hospital de referência- São João- estava com 3 a 4 meses de espera, e o outros
hospitais mais distantes da região estava com uma fila de espera menor.
Às sextas feiras aconteciam as reuniões da usf, com participação de
médicos, enfermeiras e secretárias- responsáveis por acolher o paciente, marcar
consultas e outras atividades burocráticas. Nestas reuniões eram discutidos
indicadores, protocolos, questões médicas ou de enfermagem, é também um espaço
para atualizações. Pude perceber que os indicadores da unidade, em sua maioria,
são semelhantes ao Rio, eles são divididos em exigências nacionais, regionais,
escolhidos pelo ACeS e escolhidos pela unidade, mudam a cada 3 anos e esse ano
de 2016 será novamente modificado. Percebi que indicadores também é uma
dificuldade para eles, por exemplo, em uma das reuniões, um dos temas abordados
foi o os valores abaixo do esperado para os preventivos.
Acho importante ressaltar algumas normas seguidas no Porto, que muito
diferem da nossa realidade, por exemplo; são os médicos de família os
responsáveis pela avaliação para a carta de condução de carros; são os médicos
de família que emitem atestados para a seguridade social; não é atribuição do
médico de família realizar o acompanhamento dos pacientes com tuberculose e sim
dos médicos de saúde pública, que também tratam e rastreiam os contatos. O
Porto é a cidade de maior incidência de tuberculose em Portugal.
Durante meu período de estágio, ainda tive a oportunidade de conhecer o
“atendimento complementar”, serviço oferecido a qualquer paciente, realizado na
USF Covelo das 20 às 23 horas, período em que as outras unidades já estavam
fechadas, são atendimentos de urgência e baixa complexidade, para evitar a
superlotação dos hospitais. Além deste, pude ir também há uma sessão clínica do
programa de residência, que ocorre uma vez por mês, para orientadores e
residentes, um espaço de troca de experiência e informação, com casos clínicos
apresentados pelos residentes.
Conclusão
Definitivamente, essa experiência superou minhas expectativas. Poder
conviver em outro país, outra cultura e ver como uma sociedade com uma APS
estabelecida pode ajudar a melhorar a qualidade de vida de uma população, fez
crescer ainda mais a minha vontade exercer a medicina de família. Aprender
novas medicações, novos sistemas de informação e novas condutas ampliou meus
horizontes de informações.
Foi um grande prazer conviver com Dra Felicidade, que já tem anos de
medicina geral e familiar, e sabe conduzir a unidade com sabedoria e simpatia.
Também aprendi muito com Dra Sara, que apesar de também ser residente, muito me
inspirou por tamanha dedicação aos pacientes e aos estudos.
Acredito que voltei com mais ânimo, mais amadurecida e disposta a
enfrentar os percalços da residência e da medicina de família, em prol de
realizar um bom trabalho e melhorar cada vez mais minha relação com os
pacientes.
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